sábado, 29 de agosto de 2009

FM 310 - Acordai, brasileiros

Nunca estou só, nem assim me sinto quando, fisicamente ninguém esteja a me fazer companhia. Digo mais, nem quando circunstantes haja. Aprendi a recolher-me a meus pensamentos, desligando-me de tudo e todos. Para me fazer parceria nesta solidão auto exercitada, há muitos anos, trago meu charuto e, quase sempre, meu uísque. Coisas inúteis para muitos, mas que para mim são de ímpar utilidade.

Gosto deles. Gosto de quem gosta deles e sabe apreciá-los de forma comedida. Respeito os que não gostam. Já não posso dizer o mesmo dos que não gostam e patrulham os que gostam. Refiro-me àqueles que usando da máquina pública, mantida por impostos que pagamos eu, os meus charutos e os meus drinques, intentam, quixotescamente e a todo custo, mudar meus usos e meus costumes.

Tanto quanto tais senhores sabem, sei perfeitamente que o fumar e o beber representam riscos. Assumo-os. Mas sei também – e acho que isto eles não sabem, ou não querem saber – que há outros riscos coletivos, muito maiores, contra os quais não se lançam com tal empenho. Empenho puritano que me cheira atitudes politiqueiras.

Se determinada pesquisa revela que uma parte expressiva da população (leiam-se votos) é contrária ao hábito de fumar, vamos então “fazer média” com o eleitorado, como se diz na gíria.

Tais senhores escafedem-se pela tangente trazendo à baila tais secundárias questões, deixando ao largo, outras de real valor coletivo, tais como o crescimento desordenado e a redução das áreas verdes nas cidades, o preto asfalto espichando-se quilômetros afora, impermeabilizando o solo e viabilizando mais e mais automóveis, jogando monóxido de carbono nos narizes da humanidade indefesa.

Não vou falar da segurança pública, pois seria covardia de minha parte.

Onde andam os sistemas de transporte de massa e os metrôs? Salvador, por exemplo, com seus 2,9 milhões de habitantes, no mar brasileiro de 191 milhões de almas, há inúmeros anos intenta um metrô de superfície. Melhor dizendo, um mini-metrô. Será necessário realizar-se uma Copa do Mundo de Futebol para dotar a capital baiana de tal infra-estrutura urbana?

Tudo isto por quê? Porque muitos dos senhores gestores da coisa pública, por incapacidade ou conveniente cegueira na busca de votos fáceis, - vivemos movidos por eleições - deixam de lado a infra-estrutura e passam a atrair as atenções da mídia (leia-se população) para ações espetaculosas, caso da proibição do fumo associado à bebida. Ferem direitos individuais assegurados pela nossa Constituição. Se depender de mim, tais senhores vão acabar levando fumo nas próximas eleições.

Quando não, temos o caso de ações pontuais, como acontece na minha São Gonçalo dos Campos, onde praças e jardins – coisas corriqueiras em governos ambientalistas comprometidos – se convertem em ações de destaque da administração pública. Enquanto isso, fétidas águas servidas escorrem de casas em pleno centro da cidade, ruas afora.

Em meu recolhimento, tristeza e desencanto me invadem. As cortinas de fumaças impostas à opinião pública – por certo, bem maiores que as dos meus charutos – cegam-na, transformando-a em manada dócil, fácil de ser manejada.

Neste berço esplêndido, é claro que há vozes discordantes como a minha. Infelizmente ainda são poucas.

Acordai, brasileiros!

quinta-feira, 20 de agosto de 2009

FM 309 - Fumaças da Infância

A casa de meus avós maternos tinha um daqueles quintais que não voltam mais. Passados sessenta anos e, coisas da terceira idade, as reminiscências afluem com uma clareza, fazendo parecer que tudo tivesse acontecido ontem.

Varais com roupas sempre penduradas. Roupas muito brancas, alvejadas que eram com anil. Um galinheiro sempre em produção de ovos e pintinhos. Um galo madrugador. Grama e capim nativo onde eram escondidos os “ninhos” na festa da Páscoa. Umas tantas folhas de zinco amparadas por pés toscos de madeira, reservado para corar as roupas ensaboadas, antes da lavagem final. Não havia alvejantes. A velha QBOA, precursora dos ditos, surgiu no Sul, acho que foi em 1951, numa campanha de marketing majestosa. Pequenos aviões sobrevoavam a cidade, escrevendo no espaço a palavra QBOA, com fumaça as letras gigantes. Inesquecível.

A casa enorme, de madeira, na cor sempre cinza, tinha assoalho de madeira nua crua, branco de tantas vezes escovado, protegido corredor afora, por um floreado tapete de linóleo, espécie de “plástico” da época. A água era encanada, mas a iluminação deficiente. Não tínhamos chuveiro elétrico. E a geladeira. Ah! A geladeira não elétrica era algo que se parecia com um cofre, daqueles que também só existem em nossa memória ou em museus. Os vendedores de gelo em barras, os geleiros, passavam regularmente lá em casa para nos abastecer. Assim como o leiteiro e o padeiro, que todos os dias, deixavam à porta da casa seus produtos. Ninguém mexia.

Nosso gato chamava-se Secretário. A cadela, pé duro pequena, ágil e branca, atendia por Pombinha. Quando Pombinha morreu, foi um auê, com direito a enterro num dos cantos do quintal, envolta num pano tão branco quanto ela. Depois, foram plantadas flores sobre seu “túmulo”. Quanto a Secretário, não recordo sua desaparição. Mas, e isso foi muito divertido, um dia, o bichano que era amarelo, apareceu com os pelos todos verdes, endurecidos pela areia na qual se espojara, tentando livrar-se da malfadada tinta. Sobreviveu.

Tínhamos também – o xodó de meu avô – um curió engaiolado e cantador. A gaiola, à noite era pendurada numa das paredes do banheiro. Os mosquitos eram combatidos com espirais Boa Noite. Um dia o “progresso” trouxe o inseticida Super-Flit, propelido por uma bomba aspersora. E o velho, faceiro e desavisado das propriedades letais do veneno, borrifara a casa toda. O banheiro inclusive. Dia seguinte amanhece o passarinho, morto e espichado no chão da gaiola. Foi outro arerê e uma das raras vezes que testemunhei um arranca-rabo entre meus avós, casados que foram até a morte. Amavam-se à moda antiga.

Ele, ferrenho flamenguista dos tempos do treinador paraguaio Fleitas Solich, ouvinte cativo da Rádio Tamoio, tomador de chimarrão aos fins de tarde, quando se ligava no programa Ave-Maria de Júlio Louzada. Para quem não sabe, à época, tal programa era aquilo que ora se chama líder de audiência. O Brasil todo escutava seus conselhos matrimoniais, tendo sido inspiração para uma marchinha carnavalesca. A mulher do meu maior amigo / me manda bilhetes todo dia /desde que me viu, ficou apaixonada / me dá um conselho, seu Júlio Louzada.

O velho tinha um cacoete, marca registrada dos momentos seus, assim como os charutos são a marca registrada dos momentos meus. Com a unha do polegar da mão direita pressionava a dentadura superior para, a seguir, articulando o maxilar, bater por duas vezes as dentadura superior e inferior. Crac-crac; crac-crac.

Não bebia. Ao redor dos cinquenta anos abandonara o hábito de fumar seus cigarros feitos à mão. Fumo desfiado, envolto em papel de seda, marca Colomy, desses que a rapaziada hoje usa para seus “baseados”.

Já minha avó, essa sim, destemperada verbalmente, apreciava vermute tinto doce Cinzano. Guardava a garrafa na parte inferior da cristaleira que ficava na sala de visitas.

Como meninos tudo descobrem, belo dia às escondidas, enchi um copo, ingerindo tudo de uma só feita. Foi a primeira e última vez que bebi vermute em minha vida. Ainda lembro da cabeça rodando, rodando, dos vômitos inacabáveis, ajoelhado com a cara metida na latrina. E sem nada reclamar, pois se o fizesse “o pau comia”.

Ainda não haviam lá chegado os colchões de mola. As molas eram as da própria cama, sob uma esteira de arame. Boas camas eram as marca Patente. Os colchões de palha ou crina de cavalo, envoltas em tecidos de chita multicolorida. Com o passar do tempo, endureciam-se a mais não poder.

Para coisas rápidas, a fervura do leite ou da água para o chimarrão, usava-se um fogareiro de pressão. Tais fogareiros, da marca Primus, lá no Rio Grande, estavam em todos os lares. Além do querosene como combustível, exigiam o uso de álcool para aquecer o bico injetor ao qual chamávamos de “ouvido”. Volta e meia tinha-se que desentupir o ouvido com uma agulha própria e, quando a agulha quebrava lá dentro...

O fogão era a lenha, fornecida por lenheiros, em “achas” com cerca de um metro. Quanto trabalho para cortar, com a machadinha, tais achas em três pedaços... Quando o vento refluía - lembremos que no Sul sopra famoso “minuano” - haja fumaças na cozinha!

Fumaças que neste instante me chegam, misturando-se com as do meu charuto.

Fumaças da infância.

segunda-feira, 10 de agosto de 2009

FM 308 - Efeito Estufa

Minha querida São Gonçalo dos Campos da Bahia vem de ingressar em tempos da modernidade. No local onde funcionou um dos nossos muitos armazéns de beneficiamento de fumos, foi inaugurado um mini-shopping dotado das conveniências e comodidades que integram o cenário do mundo globalizado.

Gente de coragem! Tanto o investidor, filho da terra, meu amigo Fernando Mascarenhas, quanto os comerciantes que prestigiaram a iniciativa, estabelecendo lojas de moda, butiques, calçados, lan-house, caixa eletrônico, auto-escola, coisas afins. E, como não poderia deixar de ser, um agradável bar e restaurante. Pelo mobiliário, pela bebida honesta, pela saborosa comida e pela gentileza do pessoal.

De quebra, com uma significativa vantagem sobre os bares do calçadão da cidade, onde rabisquei sei lá tantas crônicas passadas, enquanto fumava um charuto.

No novo ponto etílico não há como estacionarem veículos com seus estridentes alto-falantes, atanazando a vida de qualquer cristão. O som, quando não ao vivo, vem de uma destas TVs planas coladas à parede, que estão em todos os cantos e recantos, transmitindo vídeos de boa música, a nível audível.

Mais ainda. Ali não se discriminam, nem se patrulham, apreciadores de charutos, como está acontecendo na Paulicéia na qual, tutores das vontades alheias, em seu desvairado puritanismo, usam da máquina pública, para se arvorarem em salvadores da humanidade. Fazem-me evocar os fiscais do Sarney, que davam tudo para encontrar uma coca-cola mais cara e poderem aparecer na TV.

Ando com pena dos paulistas que, nos finais de tarde, estão sendo proibidos de estar num bom bar, num bom papo, desfrutando um bom charuto, sem que ninguém torça o nariz ou vire a cara e, o que é pior, correndo o risco de serem moralmente intimidados pelos guardiões da saúde, fiscais que com seus coletes lembram agentes da Polícia Federal. Aí me indago, por qual a razão que não dão um pulinho até a cracolândia? Do jeito que estão sendo postas as coisas, aqueles como eu, que não abrirão mão do direito de fumar bebendo um drinque, acabarão virando caso de polícia.

Ando com pena dos meus amigos paulistas, farejando lugares onde, nos finais de um dia atribulado, possam associar álcool e tabaco. Duas das úteis inutilidades que nos fazem, quando as apreciamos, nos sentirmos gente, equilibrando a eterna dicotomia com a qual se debate o ser humano.

Yes! Nós temos shopping! Sem placas proibitivas e sem fiscais, na mais importante cidade produtora de charutos do Brasil.

É onde me encontro agora, ante um friozinho nordestino, relaxando, escrevendo, bebendo e desfrutando meu charuto companheiro. Fumaças ao ar!

Paulistas, apreciadores dos charutos, bebedores! Correi! Vinde para São Gonçalo dos Campos enquanto é tempo. Enquanto não tentem também provar, estatisticamente, ser a fumaça dos charutos uma das causas do efeito estufa.