sábado, 25 de abril de 2009

FM 303 - Tunda

Nos grandes quintais de antigamente era onde aconteciam os folguedos e as peraltices da infância. Eu e, por certo, os das gerações que ultrapassaram a barreira dos sessenta anos, guardamos as melhores recordações daqueles tempos. No espaço da meninada havia árvores, jardins, gramado nativo, a “casinha” do cachorro, o varal de secar roupas, o quarador (lugar exposto ao sol, onde se deixavam as roupas ensaboadas para alvejar, um “quartinho” aos fundos para guardar a “bagulhada” da casa, e terra. Muita, muita terra na qual nos espalhávamos, corríamos, jogávamos gol a gol com bolas de meia (pequenas bolas, feitas em casa), disputávamos campeonatos de bolinhas de gude e de futebol de botões de mesa, pulávamos corda, empinávamos pandorgas (arraias, papagaios, pipas), soltávamos balões, brincávamos de nos esconder uns dos outros, de pegador (picula), de estátua, as cantigas de roda, jogávamos amarelinha, rodávamos o arco e o pião, brincávamos de cabra–cega e chicote queimado, molhávamos a roupa do quarador e aproveitávamos a ocasião para jogar água uns nos outros, dávamos milho para as galinhas.
Ah! As galinhas! A paixão de minha avó.
Ela coletava, todo o santo dia, a produção de ovos, com a mesma regularidade que meu avô, invariavelmente, tomando seu chimarrão, escutava o programa “Ave-Maria” de Júlio Louzada, na antiga Rádio Tamoio. E, detalhe interessante, a velha datava os ovos, um a um. Entende-se a razão. Não tínhamos geladeira e no uso diário, portanto, usavam-se sempre os ovos mais velhos.
Até aí, tudo bem. Deixem-me, agora, acender meu charuto-amigo para prosseguir a narrativa.
Acontece que, eu e meu irmão Hélio (pouco mais novo do que eu, porém já falecido), adorávamos comer ovos crus e quentes. Era escutarmos o cocoricó e lá íamos nós consumirmos a preciosidade, escondendo as cascas.
Tendo a velha verificado a queda de produção das galinhas, deu-se conta do que fazíamos. Proibidos que fomos em nossas precipitadas incursões, tivemos que passar a nos contentar em ouvir as galináceas anunciarem suas posturas. Belo dia, porém, urdimos um belo plano em revide à proibição.
Naquela época não havia seringas descartáveis. Todas as casas, para aplicar injeções, tinham um estojo metálico contendo uma seringa de vidro e agulhas de distintos calibres. O aparato permitia convertê-lo numa espécie de fogareiro. A tampa funcionava como base onde se punha álcool e na parte principal do estojo, superposta à tampa, eram colocadas seringa e agulhas em água a seguir fervida, para esterilizar o material.
Pois bem. Fomos, meu irmão e eu, atrás do dito estojo. Mexe aqui, mexe ali, mexe acolá. Eureka! Tínhamos em mãos a solução do nosso problema: comer os ovos sem reflexos na produção diária. A satisfação foi a mesma que a proporcionada pelo charuto que agora me inspira. Pegamos, a seguir, um toco de vela numa das gavetas da casa e ficamos à espera e à espreita do momento oportuno.
Cocoricó! Cantou uma das galinhas.
Festiva e furtivamente partimos em direção ao novo ovo. Com uma das agulhas fizemos um orifício em cada extremidade oposta e sugamos gema e clara. Passo seguinte valendo-nos da seringa, enchemos o mesmo com água, fechando os orifícios com ajuda da vela. Devolvemos o dito ao ninho e, faceiros da vida, barrigas felizes, nos divertimos a valer dando gostosas risadas. E isso, por dias seguidos.
O tempo passou. Já houvéramos esquecido o fato, envoltos que andávamos, sempre, em novas travessuras.
Como disse, a velha datava os ovos e chegara o dia de consumir o primeiro dos falsos e malfadados. Foi quando escutamos um grito de terror, seguido de xingamentos não publicáveis, lá pelas bandas da cozinha de fogão à lenha.
Eis o quadro. Nossa avó quebrara o ovo diretamente sobre a frigideira contendo banha fervente. Queimou mãos e braços com os respingos. Foi quando nos demos conta das consequências da brincadeira.
Não se faz necessário dar detalhes quanto à bela e merecida tunda, ou surra como queiram, que tomamos.

sábado, 4 de abril de 2009

FM 302 - Hífens

Não é muito fácil transformar em texto palatável, gostoso de ler, as frias normas impostas por decreto. Mesmo assim, tal como procedi em artigo anterior ao tratar dos acentos banidos da escrita da língua patria, busco inspiração no meu charuto-companheiro para intentar falar-lhes de nosso amigo hífen, o popular "tracinho".

Vamos por partes.

“A micro-história que tratava do ultra-heróico, apesar de anti-higiênico, super-homem exigia um esforço sobre-humano para entende-la”.

Algo em comum com as palavras sublinhadas? Regrinha nº 1. Todos os prefixos seguidos com palavras iniciadas com a letra “H” exigem hífen. Ah! Mas há uma exceção. Se o esforço para entender tal micro-história não estivesse acima da capacidade humana de entendimento (sobre-humano) e sim, abaixo, a grafia não será sub-humano e sim subumano.

Vamos a outro texto.

“Os pré-primários e recém-chegados sem-terras, vindos de além-mar, antes de montarem suas barracas aquém-muros da universidade, tentaram falar com o
ex-presidente, agora vice-presidente pós-graduado e pró-reitor, sem sucesso algum”.

Regrinha nº 2. Os nove prefixos citados (para facilitar lembre-se que também são nove os países de língua portuguesa): pré, recém, sem, além, aquém, ex, vice, pós e pró, sempre exigem hífen. Sem exceções, felizmente.

Agora, meus amigos, “tendo auto-observado meus sintomas, deixem-me tomar em contra-ataque à gripe que me acometeu, o anti-inflamatório que está na cozinha, sobre o micro-ondas”. Dá para perceber algo em comum nas palavras sublinhadas? Mataram a charada? Fácil, não? - Regrinha nº 3. Prefixos terminados em vogal seguidos de palavras começadas com a mesma vogal, sempre exigem o hífen. Eu disse sempre? Perdoem-me, mas para complicar, há uma exceção. Não se usa hífen quando o prefixo “CO” se acopla com uma palavra iniciada com a vogal “O”. É o caso de coordenar e coobrigar. Entendido?

Já a regrinha nº 4, em vez de tratar de vogais iguais, trata de consoantes iguais, isto é, prefixos terminados em consoantes, seguidos de palavras iniciadas com a mesma consoante, também impõem o uso do hífen. Exemplos? Hiper-rico, super-romântico, super-resistente, inter-racial.

E para hifenizar nossa escrita (e infernizar nossa vida), temos a regrinha nº 5 tratando dos sufixos de origem tupi-guarani, quais sejam, açu, guaçu e mirim, que sempre exigirão o hífen. Casos de Mogi-guaçu, araçá-mirim e capim-açu.

Bem, vimos até aqui as cinco regras que impõem o hífen. Falemos agora das rejeições do dito cujo. Usá-los, nos casos abaixo, estará indo de encontro à grafia culturalmente correta, assim como se eu saboreasse meus charutos, em locais não apropriados, seria politicamente errado.

Regrinha nº 1. Prefixos terminados em vogal diferente da vogal com que se inicia o segundo elemento, rejeitam o “tracinho”. Escreve-se, portanto: aeroespacial,
agroindústria
, autoescola, coautor, plurianual, infraestrutura
.

E, para encerrar, a regrinha nº 2 quanto às rejeições. Quando os prefixos terminados em vogal se juntam a palavras iniciadas com as letras “R” ou “S”, duplicam-se tais letras. Isto para garantir a boa pronúncia.

A neossocialista, semirrobusta, ultrarrigorosa e antissocial moça de minissaia, que tomara vacina antirrábica e usava antirrugas, com seu biorritmo alterado e num verdadeiro contrassenso, acionou o infrassom do microssistema da empresa”. Seu computador irá “reclamar” um bocado da nova grafia, sem hífens, de várias palavras sublinhadas. Deixe que reclame. Acostume-se. Assim como minha mulher que sempre reclama dos meus charutos, acostumou-se a eles.

Agora o consolo final.

Há prazo bastante para que tudo se ajuste às novas regras. Menos mal. Enquanto isto, se eu for vivo até lá, estarei me esforçando para não escrever “errado”.